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Crônicas Jurídicas: Entre Leis e Contradições

Foto do escritor: High Social Canabis ClubHigh Social Canabis Club


Bruno: Prezado colega, já parou para pensar se a burocracia existente no Brasil para a autorização de cultivo e uso medicinal da cannabis não foi, de certa forma, desenhada para desestimular iniciativas legítimas? Parece que, para começar, muitos precisam atuar em um espaço de incerteza jurídica, assumindo riscos legais e até mesmo criminais. Isso não gera um ciclo vicioso? Primeiro, a pessoa precisa operar “ilegalmente” para só depois buscar a autorização judicial, como ocorre em tantos casos recentes.


Leonardo: Concordo com a sua análise. Esse paradoxo jurídico ocorre, em grande parte, pela omissão regulatória do Estado. A Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) prevê, no artigo 2º, §1º, a possibilidade de uso medicinal e científico de substâncias sujeitas a controle especial, como a cannabis. No entanto, a ausência de regulamentação clara por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) coloca associações e indivíduos em uma situação precária. Como disse o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do RE 635.659, a falta de normatização adequada não pode inviabilizar o exercício de direitos fundamentais.


Bruno:  E como você interpreta a decisão recente sobre o IAC 16 no Superior Tribunal de Justiça (STJ)? Ela não reforça essa contradição? Pelo que entendi, o tribunal reconheceu que, na ausência de regulação, o cultivo para fins medicinais depende de autorização judicial, mas isso só é concedido àqueles que já demonstram atuar nessa atividade – mesmo que inicialmente de forma informal.


Leonardo: Exato. Essa decisão é emblemática. Ao delimitar que o cultivo de cannabis com teor de THC inferior a 0,3% (o cânhamo) poderia ser objeto de regulação específica, o STJ sinalizou uma abertura, mas deixou de contemplar adequadamente as associações que trabalham com variedades de THC mais alto. É uma vitória parcial. No entanto, o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal nos assegura que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Assim, as associações continuam utilizando o caminho dos Habeas Corpus e ações civis públicas para obter reconhecimento.






Bruno:  E enquanto isso, os médicos e farmacêuticos enfrentam desafios semelhantes. Ainda que a ANVISA permita a importação de produtos à base de cannabis, não há um procedimento claro para farmácias de manipulação que desejam trabalhar com esses produtos nacionalmente. Esse é um ponto que fragiliza ainda mais o sistema.


Leonardo: Justamente. E aqui se aplica um princípio essencial do direito administrativo: o princípio da legalidade estrita. Diferentemente dos indivíduos, que podem fazer tudo o que não está expressamente proibido, o Estado só pode atuar onde houver autorização legal. No caso da ANVISA, não há previsão específica que permita regulamentar o cultivo nacional de cannabis. Essa omissão, conforme ensina Hely Lopes Meirelles em Direito Administrativo Brasileiro, “configura falha no dever estatal de promover a eficácia das normas constitucionais programáticas”.


Bruno: O curioso é que, enquanto isso, as associações estão sendo obrigadas a construir uma jurisprudência própria. Elas criam, por meio de práticas consistentes – como contratos com transportadoras, análises laboratoriais e relatos de pacientes –, uma “história jurídica” que serve de base para sua defesa no Judiciário.


Leonardo: Sem dúvida. É o reconhecimento da autonomia privada coletiva dentro do direito constitucional brasileiro. O princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e o direito à saúde (art. 196 da CF) são frequentemente invocados para justificar que o Judiciário deve suprir a omissão administrativa. Como afirmou Celso Antônio Bandeira de Mello, o Estado, ao não cumprir seu dever regulatório, abre espaço para que particulares organizados em associações possam exercer direitos previstos em lei de forma autônoma.


Bruno:  Mas o que fazer enquanto aguardamos uma regulação mais clara? Continuar nessa zona de inovação jurídica disruptiva?


Leonardo: Parece ser o único caminho viável. Como você bem sabe, a Justiça só decide com base nos elementos apresentados na petição inicial. Não basta alegar que a cannabis medicinal é eficaz; é necessário demonstrar, por meio de laudos técnicos, relatos médicos e evidências concretas, o impacto positivo na saúde dos pacientes. Isso evita que o juiz decida de forma genérica ou com base em preconceitos sociais.


Bruno:  Então, cabe às associações continuar documentando seu trabalho e pressionando por uma regulação clara. Afinal, como aprendemos no campo do direito, as grandes mudanças muitas vezes começam de baixo para cima, pelas mãos daqueles que ousam desafiar a omissão estatal.

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